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"A Câmera de Claire": por que fotografar?



O sul-coreano Hong Sang-soo é conhecido pelo emprego de recursos mínimos em suas produções, que se repete para “A Câmera de Claire”. Com quatro personagens, vagarosos diálogos em enquadramento fixo, locações urbanas à luz natural, cores delicadas (como a música que abre e fecha o filme), o diretor, e também roteirista, apresenta, em pouco mais de uma hora, o triângulo amoroso desenredado pelos registros casuais da Polaroid de Claire (Isabelle Huppert).


Seu elogio explícito à fotografia, ao cinema, à arte (em especial à arte amadora) como “forma de mudar as coisas” (nas palavras de Claire), carrega, na estrutura, um manifesto contra a espetacularização da sociedade, das linguagens artísticas, que é também espetacularização das relações humanas. Se parece alheia, numa primeira leitura, à metalinguagem do longa, a trama de bruscos rompimentos a aprofunda.


A demissão da vendedora Manhee (Kim Min-hee) pela empresária Yanghye (Chang Mi-hee), a infidelidade e hipocrisia do cineasta So (Jung Jin-young), pautam uma discussão sobre a passagem do tempo nas relações, ou o próprio correr da vida, e os estereótipos, ou o “monopólio da aparência”: para o pensador situacionista Guy Debord, característica da “Sociedade do Espetáculo” que repercute nas mais diversas escalas.



Em reencontro acidental, So censura Manhee por aparência “vulgar”. Divulgação Pandora Filmes.


Gravado em quatro dias, em paralelo ao Cannes de 2016 (um ano antes de ser levado ao mesmo festival), a produção procura outras camadas urbanas, sob o glamour e a agitação do evento, como locação: camadas de uma Cannes cotidiana. É também este espaço-tempo, em que protagoniza o diálogo, a participação, a implicação dos sujeitos em detrimento de uma contemplação vazia do espaço, turistificada, que os situacionistas apontam como bastião contra a cidade-espetáculo.


O quase contra-senso de uma narrativa centrada na fotografia cujo principal recurso é a palavra, se justifica nesta defesa do conteúdo e da crítica da vida ordinária. Para além da arte como mediadora de novos olhares, novos sentidos, com “A Câmera de Claire” o diretor propõe uma ressignificação e revalorização das linguagens e do fazer artístico, emancipados da aparência e do mercado, como interferência no mundo que nos rodeia, e mesmo subversão do tempo.


Claire e Manhee reveem juntas as fotos da Polaroid. Divulgação Pandora Filmes.


Para Claire, “tirar uma foto é uma coisa muito importante”, porque o registro nos permite uma análise vagarosa (como os diálogos do filme) dos acontecimentos, mas também porque tem o poder de mudar quem fotografamos. Em uma contemporaneidade ditada nas/pelas mídias sociais (e agora, em quarentena, mais que nunca), em que o cinema prepondera sobre a literatura, a Polaroid do filme (que soa como referência ao Instagram) faz repensar, como sujeitos e como coletividades, que potências estamos explorando das linguagens artísticas. O que temos feito das nossas imagens? E o que as nossas imagens tem feito de nós? Que realidades estamos criando?


Causa estranhamento, ao ser demitida com meias-justificativas pela chefe, que Manhee insista que façam uma selfie, como recordação do trabalho juntas. Yanghye, desconcertada, consente. Quem assiste, permanece com uma interrogação: por que fotografar? Pois é esta a interrogação.


Publicado originalmente pela autora no blog Bar da Baixa Kultura, em 10 de maio de 2020: https://bardabaixakultura.wordpress.com/2020/05/10/a-camera-de-claire-por-que-fotografar/



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